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A mostrar mensagens de maio, 2011

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 24

Salina «As casas cobriam-se de colmo, talvez da própria bajunça com que das chuvas dos Invernos se protegiam os cónicos montes de sal. Cobriam-se do colmo que nascia, espontâneo e abundante, nos terrenos alagadiços recém-formados. Só com o andar dos tempos, a incipiente capacidade artesanal – já que seria pretenciosa impropriedade empregarem relação a essas remotas épocas termo tão dos nossos usos como que é a tecnologia – aproveitaria o barro do ao redor da moradia rústica para produzir a malga do caldo e a telha. Só com esta colocaria a primeira nota avermelhada no ambiente onde dominavam os tons verdes, de larga gama, tenros ou secos, e tão só se evidenciava nos róseos arrebóis ou nos escarlates dos poentes – esses mais remotos que a Pelagia Insula que se tem visto coincidir com o advento da formação lacustre que, centúrias de anos após, tomou o nome de Ria de Aveiro. E adoptou esse crisma da Ria, que é legenda dos nosso cartazes, espelho do nosso narcisismo bairrista e nosso «slo

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 23

É um momento solene.  Aí para baixo é a ria de Aveiro «É um momento solene. Aí para baixo é a ria de Aveiro, quarenta quilómetros de costa, vinte quilómetros para o interior, terra firme e água rodeando, todas as formas que podem ter as ilhas, os istmos, as penínsulas, todas as cores que podem ter o rio e o mar. O viajante fez bem as suas orações: não há vento, a luz é perfeita, as infinitas águas da ria são um imóvel lago. Este é o reino do Vouga, mas não há-de o viajante esquecer as ajudas da arraia-miúda dos rios, ribeiras e ribeirinhos que das vertentes das serras da Freita, de Arestal e do Caramulo avançam para o mar, alguns condescendendo afluir ao Vouga, outros abrindo o seu próprio caminho e encontrando sítio para desaguar na ria por conta própria. Digam-se os nomes de alguns, de norte para sul, acompanhando o leque desta mão de água: Antuã, Ínsua, Caima, Mau, Alfusqueiro, Águeda, Cértima, Levira, Boco, fora os que só têm nome para quem vive à borda deles e os conhece de nas

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 22

Safra da marinha «É certo que de cada popa se vê um Portugal diferente, conforme a latitude: verde e gaiteiro em cima, salino e moliceiro no meio, maneirinho e a rilhar alfarroba ao fundo. Camponeses de branqueta e soeste a apanhar sargaço na Apúlia, marnotos a arquitectar brancura em Aveiro, saloios a hortelar em Caneças, ganhões de pelico a lavrar em Odemira, árabes a apanhar figos em Loulé. Metendo o barco pela terra dentro, é mesmo possível ir mais além. Assistir, em Gaia, à chegada do Doiro, ver transformar em húmus as dunas da Gafanha, ter miragens nos campos de Coimbra…» Miguel Torga “Portugal”

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 21

Miguel Torga: Aveiro, 9 de junho de 1974 - A caminho da Costa Nova, com a sensação de que os barcos navegam no meio dos milheirais.

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 20

Eça de Queirós … Filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quase peixe da ria, eu não preciso que mandem ao meu encontro caleches e barcaças. Eu sei ir por meu próprio pé ao velho e conhecido «palheiro de José Estêvão». Eça de Queirós, “Carta a Oliveira Martins”, 1884 … a Costa Nova — e eu considero esse um dos mais deliciosos pontos do globo. É verdade que estávamos lá em grande alegria e no excelente chalé Magalhães. Eça de Queirós,   “Entre os Seus, Cartas Íntimas”, 15 de Julho de 1893 Apesar de ter retardado ontem o meu jantar até às nove da noite, não pude desbastar a minha montanha de prosa. Levar as provas para os areais da Costa Nova, não é prático — ó homem prático! Há lá decerto a brisa, a vaga, a duna, o infinito e   a sardinha — coisas essenciais para a inspiração — mas falta-me essa outra condição suprema: um quarto isolado com uma mesa de pinho. “Carta a Oliveira Martins”, 1884

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 19

Saudades de mim, menino Ai barcos, ai barcos Triste é  vosso negror, Por onde ides navegar? Que espreitais (?), Pelo olho que levais na proa. Ai amores, ai amores Da ria amada, Ai amores de verde pino… Ai saudades de mim, menino, Levai-me no vosso vagar. Senos da Fonseca “Marés”

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 18

Palheiro de José Estêvão Destes ocasos d’oiro e deste cerúleo mar, Desta mesma risonha e plácida paisagem, Quantas vezes, meu Pai, a luminosa imagem Se reflectiu no teu embevecido olhar! Era aqui, nesta paz, que vinhas descansar, Refazer, para a luta, as forças e a coragem, Vendo a planície verde ao fundo e, sob a aragem, Brancas, no azul da Ria, as velas deslizar… Por isso o coração aqui me prende assim! E, da saudade, quando, ao remorder acerbo, Tua figura evoco e ressuscito em mim, Vejo-te errar na praia — emocionado engano! — Buscando a inspiração do teu ardente verbo No esplendor do Infinito e o tumultuar do Oceano! Luís de Magalhães  " José Estêvão — Estudos e Colectânea” 

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 17

«A Ria entende-se em canais, em esteiros, em valas, em fiozinhos de água, dividindo-se e subdividindo-se até ao capilar, entrando pela terra dentro, recortando-a e irrigando-a de água salgada, ou, pelo menos, salobra, e que se vai adocicando à medida que foge do mar e se estende, por aí fora, a servir de espelho a uma lavoura anfíbia que lança a semente ao chão e penteia o fundo lodoso das cales, que surriba terra até sentir os pés encharcados e pesca pimpões nas valas intercalares nos fugidios momentos de lazer. Os longes de água são emoldurados por um debrum delgadinho – topo de planície raso povoada de casas alapadas – e tem-se a sugestão de que a terra se envergonha e se humilha perante a imensidade da laguna, esfumando-se e diluindo-se no horizonte de encontro ao perfil violeta dos montes das distância... Em certas manhãs, doiradas pelo sol nascente, a Ria parece toda um espelho onde, apenas, um trémulo de evaporação – ténue e vibrátil – põe um vestígio de movimento ritmado.

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 16

A Ria de Aveiro Deixem-me ir hoje, no meu rico vagar, pela estrada que de Aveiro vai ter à Barra.  A começar nas Pirâmides.  Mas antes de lançar pés à suavíssima marcha, esperemos que avance e que passe uma vela que se mostrou ao longe, vinda certamente com pescaria miúda das costas de São Jacinto em demanda do nosso canal.  Já se distinguem perfeitamente os clássicos e variados remendos do pano: um xadrez, meus amigos, um verdadeiro xadrez!  À escota vem um marnoto de idade, de ceroilas curtas, nem chegam aos joelhos: de camisola azul ferrete, grossa como uma tábua, grossa como um cortiço, aberta à boca do peito; de carapuço de lã na cabeça, com a ponta derrubada para a nuca e terminada por uma bolinha.  — Linda manobra, sim senhora, linda manobra.  — Pois c’anté! — responde o velho, descobrindo a venerável cabeça.  A estrada não é muito larga nem dá muitas voltas para chegar ao seu aprazível e benfazejo destino: mas de ambos os lados tem uma renda finíssima de tamargueiras que merg

Gafanha em "Recordações de Aveiro"

Foto da Família Ribau, cedida pelo Ângelo Ribau António Gomes da Rocha Madail escreveu na revista “Aveiro e o seu Distrito”, n.º 2 de 1966, um artigo com o título de “Impressões de Aveiro recolhidas em 1871».   Cita, em determinada altura, “Recordações de Aveiro”, de Guerra Leal, que aqui transcrevo: (…)  «No seguimento d'esta estrada ha uma ponte de um só arco, por baixo da qual atravessa o canal que vai a Ilhavo, Vista Alegre, Vagos, etc., e ha tambem a ponte denominada das Cambeias, proxima à Gafanha.  É curiosa e de data pouco remota a historia d'esta povoação original, que occupa uma pequena peninsula. Era tudo areal quando das partes de Mira para alli vieram os fundadores d' aquelIa colonia agricola, que á força de trabalho e perseverança conseguiu, com o lodo e moliço da ria, transformar uma grande parte do areal em terreno productivo. Foi crescendo a população, que já hoje conta uns 200 fogos, e o que fôra esteril areal pouco a pouco se transformou em fertil e

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 15

AVEIRO  Eis os longos lençóis brancos das salinas mais o inesperado jardim de palmeiras desta sem cartazes Aveiro, exótica no contexto da geografia portuguesa. Salinas e palmeiras! A bordo dum barco minúsculo, giramos a delícia de descobrir, na claridade gratuita, pequena franja de Oriente inserido num plano de paisagem da Holanda. O barqueiro seguro em camisa da Nazaré manobra servindo-se de mínimos calculados gestos.  ~~~~ Quase salta ao nível da rua o peixe azul ou vermelho. As não-inquietantes aveirenses riem recíprocas, quem sabe saberão a sal.  ~~~~ Nada electrónico, nada «arrabbiato», esconjurando eventualmente o mal do século nuclear, na distante Aveiro, sem haveres, em outra dimensão política, eu viveria saboreando ovos moles, atento aos longos e longes lençóis brancos de sol cómodo e suas salinas.  Roma, 1966 MURILO MENDES ~~~~~~~~~~~~ Murilo Mendes (1901-1975) haverá escrito os seus versos, denominados «Aveiro», em 1966. Casado com Maria da Saudade Cortesão, filh

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 14

RIA DE AVEIRO Na ria de Aveiro Quero um pequenino Barco moliceiro. Também sou menino. Na ria de Aveiro Podeis vir comigo, Barco moliceiro Nunca tem perigo. Nunca se naufraga Na ria inocente: Da crista da vaga Vêm braços à gente. Quer vão ao moliço, Quer soltem as redes, O mar é submisso Aos barcos que vedes. Brancas, amarelas, Na ria de Aveiro Se espalham as velas: Brinquedo ligeiro. Também sou menino, Ó moças de Aveiro! Dai-me um pequenino Barco moliceiro. RIBEIRO COUTO 1944 Ribeiro Couto (1898-1963) terá passado por Aveiro em 1944 – pelo menos é essa a data do seu poema –, onde se deixou cativar pela graça quase alada dos barcos moliceiros. Caso Curioso, na mesma época estabeleceria relações de Índole literária com Mário Sacramento. “Aveiro e o seu Distrito”, n.º 20, Dezembro de 1975

Aprender a ler na Gafanha

É ponto assente que muitos dos primitivos povoadores da Gafanha eram, academicamente falando, analfabetos ou semianalfabetos. Teriam a cultura da experiência feita, do contacto com os familiares e amigos e do pequeno mundo que limitava os seus horizontes. Escolas não havia. Alguns padres preparavam os candidatos ao sacerdócio, sendo garantido e normal que um ou outro aluno derivasse para outras áreas do saber. Do testemunho oral que colhi, do meu privilegiado interlocutor, João Catraio, à hora da sesta, no Verão, ou ao serão, no Inverno, os jovens de qualquer idade aprendiam a ler, escrever e fazer contas com mestres, sem estudos para além do essencial, colhidos talvez da mesma forma que agora seguiam. Na época das colheitas, os pais ou os próprios alunos pagavam aos senhores mestres com géneros, da melhor maneira que podiam. Uns mais do que outros, conforme as posses.  Fernando Martins Fonte: "Gafanha da Nazaré: 100 anos de vida"

Migalhas de boroa para sopas de café

Migalhas «Conheci um padeiro que distribuía o pão de bicicleta, num cesto de duas abas, pendentes no porta-bagagem. Um dia recusou vender pão, só porque o filho da casa, ingenuamente, o informou de que a mãe tinha duas caixas de milho.  Um amigo, que costumava comprar boroa na sua padaria, na Barra, quando chegou a sua vez, deparou-se com um dilema. A boroa estava esgotada e o meu amigo, mais velho do que eu uns anitos, viu-se obrigado a comprar as migalhas que restavam na bancada de mármore. Questionado por mim para que serviam as migalhas, que havia pago como se fossem um pedaço de boroa, limitou-se a dizer-me que se destinavam a sopas de café.» Nota: Esta estória aconteceu no tempo da Segunda Grande Guerra Fernando Martins Do livro "Gafanha da Nazaré: 100 anos de vida"

Uma estória que não pode ficar esquecida

O Búzio  «Tão pobrezinha [a primeira capela] que estava desprovida de torre, ou simples campanário, e de sinos.  Sem campanário, sem sinos… Como remediar a falta? Como convocar os fiéis para a santa Missa, para o exercício do culto divino?  Tem o seu quê de regional e de poético a maneira como remediaram a falta e como convocavam os fiéis ao templo. No dealbar do dia, ou à tarde ao mergulhar suave e majestoso do sol nas águas do Oceano, conforme a convocação se fizesse para o Santo Sacrifício ou para as orações da manhã ou da noite, um repolhudo gafanhão, improvisado de sacrista, dirigia-se para o templozinho cheio de misticismo, descalço, de cuecas a cair sobre a rótula, cingidas pelo cós com um só botão às ancas espadaúdas. De barrete pendente sobre as orelhas, contas ao pescoço sobre a baeta da camisola, e de gabão velho, esburacado, deixava fustigar pelo vento da madrugada as canelas magras e nuas.  Este bom e anafado gafanhão, ia eu dizendo, assim descrito, tal qual era na prim